Será que somos um bando de
gente pacífica cercado por pessoas violentas?
Por Fred Di Giacomo
“Achamos que somos um
bando de gente pacífica cercados por pessoas violentas”. A frase que bem define
o brasileiro e o ódio no qual estamos imersos é do historiador Leandro Karnal.
A ideia de que nós, nossas famílias ou
nossa cidade são um poço de civilidade em meio a um país bárbaro é comum no Brasil. O “mito do homem cordial”, costumeiramente mal interpretado, acabou virando o mito do “cidadão de bem amável e simpático”. Pena que isso seja uma mentira. “O homem cordial não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva”, explica o sociólogo Antônio Cândido. O brasileiro se obriga a ser simpático com os colegas de trabalho, a receber bem a visita indesejada e a oferecer o pedaço do chocolate para o estranho no ônibus. Depois fala mal de todos pelas costas, muito educadamente.
nossa cidade são um poço de civilidade em meio a um país bárbaro é comum no Brasil. O “mito do homem cordial”, costumeiramente mal interpretado, acabou virando o mito do “cidadão de bem amável e simpático”. Pena que isso seja uma mentira. “O homem cordial não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva”, explica o sociólogo Antônio Cândido. O brasileiro se obriga a ser simpático com os colegas de trabalho, a receber bem a visita indesejada e a oferecer o pedaço do chocolate para o estranho no ônibus. Depois fala mal de todos pelas costas, muito educadamente.
Olhemos o dicionário:
cordial significa referente ou próprio do coração. Ou seja, significa ser mais
sentimental e menos racional. Mas o ódio também é um sentimento, assim como o
amor. (Aliás os neurocientistas têm descoberto que ambos sentimentos ativam as
mesmas partes do cérebro.) Nós odiamos e amamos com a mesma facilidade. Dizemos
que “gostaríamos de morar num país civilizado como a Alemanha ou os Estados
Unidos, mas que aqui no Brasil não dá para ser sério.” Queremos resolver tudo
num passe de mágica. Se o político é corrupto devemos tirar ele do poder à
força, mas se vamos para rua e “fazemos balbúrdia” devemos ser espancados e se
somos espancados indevidamente, o policial deve ser morto e assim seguimos
nossa espiral de ódio e de comportamentos irracionais, pedindo que “cortem a
cabeça dele, cortem a cabeça dele”, como a rainha louca de Alice no País das
Maravilhas. Ninguém para 5 segundos para pensar no que fala ou no que comenta
na internet. Grita-se muito alto e depois volta-se para a sala para comer o
jantar. Pede-se para matar o menor infrator e depois gargalha-se com o
humorístico da televisão. Não gostamos de refletir, não gostamos de lembrar em
quem votamos na última eleição e não gostamos de procurar a saída que vai
demorar mais tempo, mas será mais eficiente. Com escreveu Sérgio Buarque de
Holanda, o criador do termo “homem cordial”: “No Brasil, pode dizer-se que só
excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários
puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao
contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio
constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em
círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal” Ou seja, desde
o começo do Brasil todo mundo tem pensando apenas no próprio umbigo e leva as
coisas públicas como coisa familiar. Somos uma grande família, onde todos se
amam. Ou não?
O já citado Leandro Karnal
diz que os livros de história brasileiros nunca usam o termo guerra civil em
suas páginas. Preferimos dizer que guerras que duraram 10 anos (como a
Farroupilha) foram revoltas. Foram “insurreições”. O termo “guerra civil” nos
parece muito “exagerado”, muito “violento” para um povo tão “pacífico”. A
verdade é que nunca fomos pacíficos. A história do Brasil é marcada sempre por
violência, torturas e conflitos. As decapitações que chocam nos presídios eram
moda há séculos e foram aplicadas em praça pública para servir de exemplo nos
casos de Tiradentes e Zumbi. As cabeças dos bandidos de Lampião ficaram
expostas em museu por anos. Por aqui, achamos que todos os problemas podem ser
resolvidos com uma piada ou com uma pedrada. Se o papo informal não funciona
devemos “matar” o outro. Duvida? Basta lembrar que por aqui a república foi
proclamada por um golpe militar. E que golpes e revoluções “parecem ser a única
solução possível para consertar esse país”. A força é a única opção para fazer
o outro entender que sua ideia é melhor que a dele? O debate saudável e a
democracia parecem ideias muito novas e frágeis para nosso país.
Em 30 anos, tivemos um
crescimento de cerca de 502% na taxa de homicídios no Brasil. Só em 2012 os
homicídios cresceram 8%. A maior parte dos comentários raivosos que se lê e se
ouve prega que para resolver esse problema devemos empregar mais violência. Se
você não concorda “deve adotar um bandido”. Não existe a possibilidade de ser
contra o bandido e contra a violência ao mesmo tempo. Na minha opinião,
primeiro devemos entender a violência e depois vomitar quais seriam suas
soluções. Por exemplo, você sabia que ocorrem mais estupros do que homicídios
no Brasil? E que existem mais mortes causadas pelo trânsito do Brasil do que
por armas de fogo? Sim, nosso trânsito mata mais que um país em guerra. Isso
não costuma gerar protestos revoltados na internet. Mas tampouco alivia as mortes
por arma de fogo que também tem crescido ano a ano e se equiparam, entre 2004 e
2007, ao número de mortes em TODOS conflitos armados dos últimos anos. E quem
está morrendo? 93% dos mortos por armas de fogo no Brasil são homens e 67% são
jovens. Aliás, morte por arma de fogo é a principal causa de mortalidade entre
os jovens brasileiros. Quanto à questão racial, morrem 133% mais negros do que
brancos no Brasil. E mais: o número de brancos mortos entre 2002 e 2010
diminuiu 25%, ao contrário do número de negros que cresceu 35%. É importante
entender, no entanto, que essas mortes não são causadas apenas por bandidos em
ações cotidianas. Um dado expressivo: no estado de São Paulo ocorreram 344
mortes por latrocínio (roubo seguido de morte) no ano de 2012. No mesmo ano,
foram mortos 546 pessoas em confronto com a PM. Esses números são altos, mas
temos índices ainda mais altos de mortes por motivos fúteis (brigas de
trânsito, conflitos amorosos, desentendimentos entre vizinhos, violências
domésticas, brigas de rua, etc). Entre 2011 e 2012, 80% dos homicídios do
Estado de São Paulo teriam sido causados por esses motivos que não envolvem
ação criminosa. Mortes que poderiam ter sido evitadas com menos ódio. É
importante lembrar que vivemos numa sociedade em que “quem não reage, rasteja”,
mas geralmente a reação deve ser violenta. Se “mexeram com sua mina” você deve
encher o cara de porrada, se xingaram seu filho na escola “ele deve aprender a
se defender”, se falaram alto com você na briga de trânsito, você deve colocar
“o babaca no seu lugar”. Quem não age violentamente é fraco, frouxo, otário.
Legal é ser ou Zé Pequeno ou Capitão Nascimento. Nossos heróis são viris e
“esculacham”.
Se tivesse nascido no
Brasil, Gandhi não seria um homem sábio, mas um “bundão” ou um “otário”.
*
O discurso de ódio invade
todos os lares e todos os segmentos. Agora que o gigante acordou e o Brasil
resolveu deixar de ser “alienado” todo mundo odeia tudo. O colunista da Veja
odeia o âncora da Record que odeia o policial que odeia o manifestante que odeia
o político que odeia o pastor que odeia o “marxista” que odeia o senhor “de
bem” que fica em casa odiando o mundo inteiro em seus comentários nos portais
da internet. Para onde um debate rasteiro como esse vai nos levar? Gritamos e
gritamos alto, mas gritamos por quê?
Política não é torcida de
futebol, não adianta você torcer pela derrota do adversário para ficar feliz no
domingo. A cada escândalo de corrupção, a cada pedreiro torturado, a cada
cinegrafista assassinado, a cada dentista queimada, a cada homossexual
espancado; todos perdemos. Perdemos a chance de conseguir dialogar com o outro
e ganhamos mais um motivo para odiar quem defende o que não concordamos.
Precisamos parar para
respirar e pensar o que queremos e como queremos. Dialogar. Entender as
vontades do outro. O Brasil vive um momento de efervescência, vamos usar essa
energia para melhorar as coisas ou ficar nos matando com rojões, balas e
bombas? Ou ficar prendendo trombadinhas no poste, torturando pedreiros e
chacinando pessoas na periferia? Ou ficar pedindo bala na cabeça de políticos?
Ficar desejando um novo câncer para o Reinaldo Azevedo ou para o Lula? Exigir a
volta da ditadura? Ameaçar de morte quem faz uma piada que não gostamos?
Se a gente escutasse o que
temos gritado, escrito e falado, perceberíamos como temos descido em direção às
trevas interiores dos brasileiros às quais Nélson Rodrigues avisava que era
melhor “não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro.”
Será que não precisamos de
mais inteligência e informação e menos ódio? Quando vamos sair dessa
infantilidade de “papai bate nele porque ele é mau” e vamos começar a agir como
adultos? Quando vamos começar a assumir que, sim, somos um povo violento e que
estamos cansados da violência? Que queremos sofrer menos violência e provocar
menos violência? Somos um povo tão religioso e cristão, mas que ignora
intencionalmente diversos ensinamentos de Jesus Cristo. Não amamos ao nosso
inimigo, não damos a outra face, não deixamos de apedrejar os pecadores.
Esquecemos que a ira é um dos sete pecados capitais. Gostamos de ficar presos
na fantasia de que vivemos numa ilha de gente de bem cercada de violência e
barbárie e que a única solução para nossos problemas é exterminar todos os
outros que nos cercam e nos amedrontam.
Mas quando tudo for só pó
e solidão, quem iremos culpar pelo ódio que ainda carregaremos dentro de nós?
Fonte:https://camilavazvaz.jusbrasil.com.br/artigos/224672979/a-historia-do-odio-no-brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário